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A busca por calma em tempos de fúria: O varejo responde à “Anger Economy”
Vivemos em uma era de paradoxos. Nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão sobrecarregados. A incessante enxurrada de informações, a velocidade vertiginosa da comunicação digital, a avalanche de ofertas e marcas competindo por nossa atenção têm nos deixado exaustos. Esmagados por estímulos, muitos consumidores se veem imersos em uma espiral de frustração, ansiedade e, muitas vezes, raiva. Esse cenário fértil deu origem ao que se convencionou chamar de “Anger Economy”, um fenômeno que está remodelando o comportamento de consumo e exigindo uma profunda reavaliação das estratégias do varejo.
A “Anger Economy” é um reflexo da insatisfação generalizada com um sistema que nos bombardeia com estímulos, sem nos oferecer respiro. As pessoas estão cansadas de promessas vazias, de experiências de compra impessoais e de marcas que não se conectam com suas necessidades e valores. Essa insatisfação transborda nas redes sociais, onde reclamações se espalham como rastilho de pólvora, impactando a reputação e as vendas das empresas. Estudos indicam que uma onda de críticas online pode levar a uma queda de até 30% nas vendas de uma marca, mostrando o poder destrutivo da raiva quando não endereçada adequadamente.
Curiosamente, essa mesma era de sobrecarga e irritação impulsionou um anseio crescente por experiências que ofereçam o oposto: calma, acolhimento e desconexão. É nesse contexto que o “escapism retail” e o “slow retail” ganham força, representando uma fuga do frenesi digital e uma busca por momentos de paz e conexão humana no ambiente de compra. Enquanto o “dopamine retail” (com suas cores vibrantes, músicas altas e promoções agressivas) buscava estimular a compra por meio da excitação, o “calm retail” responde com ambientes minimalistas, tons suaves, iluminação aconchegante e materiais naturais. Essa mudança radical não é apenas uma questão de estética, mas uma resposta direta ao estado emocional dos consumidores.
O “escapism retail” vai além da simples compra, oferecendo verdadeiras imersões em universos paralelos. As lojas se transformam em espaços de descoberta, com exposições criativas, ambientes temáticos e experiências interativas que convidam os clientes a deixar de lado as preocupações do dia a dia e se conectar com a marca de forma genuína. Já o “slow retail” resgata a essência da conexão humana, com atendimento personalizado, produtos exclusivos e um ambiente que convida à contemplação. A ideia é desacelerar o ritmo frenético da vida, transformando a ida à loja em um momento de relaxamento e prazer, em um retorno ao que Lee Peterson chama de “great truth”: a verdade que existe em seu oposto.
As palestras ministradas na NRF2025 por Kate Ancketill, Lee Peterson e Cassandra Napoli (as queridinhas dos brasileiros) trouxeram reflexões valiosas sobre o assunto, que merecem um olhar mais detalhado. Ancketill, em sua apresentação “Global Retail Trends: why the human touch is to leveraging the full potential of AI“, fez uma análise sobre o papel da inteligência artificial no varejo, ressaltando que, apesar do grande potencial transformador da IA, existe um anseio crescente por experiências que valorizem o lado humano. Segundo a especialista, a IA, apesar de sua capacidade de otimizar processos e melhorar a eficiência, não pode substituir a conexão humana. O varejo físico tem um papel fundamental na oferta de oportunidades de conectividade, proximidade e engajamento sensorial. Ancketill alertou também para os desafios da IA, como o alto custo da computação, a perda de empregos e a disseminação de fraudes e deep fakes, ressaltando a importância de se encontrar um meio termo sustentável para a adoção da tecnologia. E reforçou a necessidade de se criar “awe” – aquela emoção subjetiva de admiração, através da beleza, da arte e da cultura – nos espaços de varejo, que oferecem uma experiência extraordinária. A palestrante exemplificou como a Gentle Monster, a The Outernet, a Louis Vuitton The Place e a Dior Gold House vêm criando esse efeito em suas lojas, focando em design, arte e experiências imersivas, que despertam emoções mais intensas e conexões mais profundas com os clientes.
Complementando a visão de Ancketill, Lee Peterson, em sua palestra “How stores compete in a world of same-day super speed?“, desafiou os varejistas a repensarem suas estratégias diante da crescente velocidade das entregas online e da cultura do “tudo para ontem”. Peterson argumentou que as lojas físicas não podem competir na velocidade com os grandes players do e-commerce, e que tentar fazer isso seria um erro. O especialista propôs que a alternativa é focar na construção de experiências mais emocionais, em contraposição à lógica da rapidez e da eficiência. Segundo Peterson, os consumidores preferem comprar online principalmente pela conveniência e pela falta de tempo, mas o varejo físico pode se sobressair quando oferece atendimento de qualidade, lojas organizadas e produtos bem selecionados. Para ele, a experiência do cliente não é um conceito abstrato, mas algo tangível que pode ser medido e aprimorado. Peterson fez um paralelo com o “slow food movement”, mostrando a importância de se preparar a experiência de compra com cuidado, atenção e propósito. Ao invés de correr contra a velocidade, as marcas devem oferecer qualidade, design diferenciado, atendimento personalizado e produtos exclusivos. Para Peterson, o “slow retail” é a resposta ao “fast retail”, um convite à desaceleração, à conexão humana e ao consumo consciente. E deu como exemplo lojas como Crate & Barrel, Ven.Space e Yeti que são cases de sucesso de slow retail, que oferecem um ambiente diferente, que foge à correria e ao caos dos grandes centros comerciais. Além de citar a loja Ace Hardware, que mesmo sendo um grande varejista de produtos de construção, oferece atendimento personalizado como um grande diferencial para seus clientes, indo de encontro à necessidade de conexão e atendimento.
Já Cassandra Napoli, em sua palestra “Retail future-proofing 2027 and beyond“, explorou os direcionadores que moldarão o futuro do varejo, ressaltando a importância da criatividade para o sucesso das marcas. Ela enfatizou que a sociedade atual busca equilíbrio entre o “nós” e o “eu”, com uma necessidade crescente de conexão e de responsabilidade coletiva. Napoli abordou também o impacto da tecnologia, com a IA sendo vista tanto como uma ameaça quanto como uma oportunidade. Para ela, é fundamental usar a IA para aumentar a eficiência pessoal e não para substituir a conexão humana, reforçando a ideia da necessidade de menos tecnologia digital e mais conexão emocional. Outro ponto crucial abordado por Napoli foi o meio ambiente, com a sustentabilidade e as mudanças climáticas sendo pautas urgentes no mundo de hoje. Segundo a especialista, as empresas devem priorizar o bem-estar do planeta e oferecer produtos duráveis e ecologicamente corretos. Napoli também apresentou a complexidade do cenário político, com tensões e raiva sendo emoções cada vez mais presentes na sociedade. Para ela, as empresas devem entender a nuances da raiva de seus consumidores, e oferecer atenção e suporte aos seus funcionários. Segundo Napoli, a criatividade é a chave para o futuro do varejo. As empresas precisam ter a mente aberta para a inovação, adotando modelos de negócios mais ágeis, transparentes e colaborativos. A especialista também trouxe um ponto interessante sobre o “poder do play”, que é a capacidade de reunir as pessoas em torno de um propósito e criar comunidade, e que as marcas podem criar uma cultura de “play” em suas empresas para potencializar a criatividade.
As queridinhas do Brasil, trazendo um DNA de mesmo tom. Uma resposta as acelerações e preocupações de um mundo em que movimento começou a ditar as rédeas, e o ser humano passa a sentir falta da conexão. Mesmos elementos visualizados em diversas das lojas conceito e suas reinvenções (Louis Vuitton, Balanciaga, Warby Parker…).
Em resumo, o consumidor de hoje busca mais do que produtos: ele busca acolhimento. Diante de um mundo caótico e uma comunicação saturada, as lojas que souberem oferecer espaços de calma, experiências imersivas e atendimento humanizado estarão à frente no mercado. A “Anger Economy” nos ensina que o consumidor não é um mero alvo de promoções e estímulos, mas um ser humano com necessidades emocionais complexas. O varejo que souber responder a esse chamado, oferecendo espaços de refúgio em meio ao caos, certamente estará trilhando o único caminho possível para o sucesso: o de verdadeira conquista do consumidor.
Imagem: Jorge Inafuco
Patricia Cotti – Diretora Adjunta de Estudos de Varejo IBEVAR; Mentora de Modelagem de Negócios da Quality; Embaixadora do Mulheres no Ecommerce; Palestrante e Professora da FIA, ESPM, USP e ESECOM