Colunistas

Inteligência artificial: um olhar para o varejo físico

Publicado

on

Inteligência Artificial

Por décadas, o varejo físico operou sob um véu de incerteza. Enquanto o e-commerce florescia, alimentado por um oceano de dados precisos – cada clique, cada segundo em uma página, cada produto visualizado –, a loja física permanecia uma “caixa-preta”. O cliente entrava, caminhava pelos corredores, talvez comprasse algo e ia embora. Suas intenções, frustrações e a jornada real que o levou (ou não) à compra eram, em grande parte, invisíveis, relegadas à intuição do gerente e à observação esporádica dos vendedores. Essa disparidade fundamental criou um abismo de inteligência entre os mundos digital e físico.

Hoje, uma revolução silenciosa, impulsionada pela Inteligência Artificial (IA), está desmantelando essa caixa-preta. Ela está transformando os dados antes inertes e invisíveis em um fluxo contínuo de insights acionáveis, prometendo ao varejo físico um nível de compreensão do cliente e eficiência operacional que antes parecia exclusivo do domínio online. O desafio, e a imensa oportunidade, reside no que é conhecido como “Dark Data”: todos os dados que uma organização coleta, processa e armazena, mas não utiliza para análise ou tomada de decisão.

Estudos de mercado, como os da Gartner e Veritas, são alarmantes: estima-se que até 80% dos dados não estruturados de uma empresa nunca são analisados, e mais da metade de todos os dados armazenados são “dark”, com conteúdo e valor desconhecidos. No varejo, essa montanha de dados inclui logs de chatbots e WhatsApp, e-mails de atendimento, gravações de chamadas, comentários em redes sociais, e, crucialmente, os vídeos de CFTV, dados de sensores de IoT, logs de Wi-Fi e os próprios dados transacionais do PDV. Sozinhas, essas informações são fragmentadas. Conectadas por IA, elas se tornam o sistema nervoso de uma loja viva e inteligente.

A IA é a ponte que transforma esses dados brutos em “dados claros”: insights comportamentais, operacionais, demográficos e de sentimento que alimentam um novo paradigma de gestão no ponto de venda, e que trazem eficiência e experiência. 

Um olhar sobre a jornada do PDV: experiência via IA

O verdadeiro poder da IA no varejo físico se manifesta ao longo de toda a jornada de compra do cliente, otimizando cada ponto de contato de maneira personalizada e contextual. Ao mapear as etapas clássicas – Conscientização, Consideração, Avaliação, Utilização, Conversão e Recompra – podemos ver como diferentes tecnologias de Inteligência Artificial estão sendo aplicadas para criar uma experiência mais fluida, relevante e, finalmente, mais lucrativa.

Conscientização: onde a jornada começa, muitas vezes antes mesmo de o cliente pegar um produto. Aqui, a IA atua para capturar a atenção de forma inteligente. Na Walgreens, por exemplo, as portas de vidro dos refrigeradores de bebidas foram substituídas por telas digitais interativas. Sensores e câmeras anônimas detectam a aproximação de um cliente e a IA infere dados demográficos básicos (como gênero e faixa etária) e o nível de atenção para exibir anúncios e promoções de forma dinâmica e relevante.

De forma semelhante, o McDonald’s utiliza IA em seus totens de autoatendimento e, principalmente, nas telas de drive-thru, para personalizar o menu exibido em tempo real. O sistema leva em conta a hora do dia, o clima, a popularidade de itens naquela loja específica e até o que o cliente já adicionou ao pedido, criando um conteúdo dinâmico que aumenta as chances de upsell.

Consideração: fase em que o cliente explora opções. A Inteligência Artificial, aqui, pode se tornar um excelente mecanismo, principalmente em auxilio aos colaboradores de loja, ou como um poderoso assistente de vendas. O aplicativo do vendedor do Magazine Luiza, por exemplo, está evoluindo com IA generativa para se tornar um “consultor de bolso”, capaz de gerar comparações e argumentos de venda para produtos eletrônicos complexos, munindo a equipe com informações precisas no momento da interação.

Em outra frente, a Via investiu pesadamente em seu assistente virtual no WhatsApp, o “CB” (representando o Baianinho da Casas Bahia). Milhões de clientes interagem com ele para tirar dúvidas sobre produtos, utilizando Processamento de Linguagem Natural (PLN) para entender e responder às perguntas de forma conversacional, sem a necessidade de um atendente humano para questões rotineiras.

Avaliação: é talvez a etapa em que as aplicações de IA sejam mais visivelmente futuristas, mas ainda sim aplicadas, cabendo o cuidado na hora da adoção, dentro de matriz de esforço de implementação e efetivo resultado gerado. Cabe a cada operação, diante de seu objetivo fim, verificar até que ponto as mudanças podem efetivamente alterar o ponteiro, seja de marca ou de vendas.

A Puma, em suas lojas flagship, instalou espelhos de corpo inteiro com Realidade Aumentada (AR). Esses “espelhos mágicos” permitem que os clientes “experimentem” virtualmente diferentes peças de roupa. A IA sobrepõe a imagem da roupa à imagem do cliente em tempo real, permitindo trocas de cor e modelo com gestos simples.

A Óticas Carol implementou uma solução similar com totens equipados com câmeras e software de IA. O cliente se posiciona em frente ao totem, que escaneia e mapeia seu rosto, permitindo que ele experimente virtualmente centenas de armações, com a IA ajustando perfeitamente o tamanho e a posição dos óculos ao seu formato de rosto. Essa tecnologia de “AR Try-On” não apenas diverte, mas também acelera a decisão de compra e reduz o atrito de manusear múltiplos produtos.

Conversão: quando o cliente se decide pela compra. O papel da IA aqui é tornar o processo o mais rápido e indolor possível, e mais personalizado. A RaiaDrogasil, assim como outros grandes players do setor farmacêutico, utiliza fortemente os dados de seus programas de fidelidade no PDV. Ao identificar o cliente, o sistema oferece descontos direcionados em produtos que ele costuma comprar ou em categorias relacionadas, incentivando a recompra e aumentando o valor da cesta.

A Sephora vai além, usando a localização via app para saber quando um cliente fidelizado está na loja. O sistema cruza seu histórico de compras e comportamento para oferecer produtos e promoções específicas, transformando a visita em uma experiência altamente personalizada. O mesmo princípio é aplicado pelo Starbucks, que reconhece o consumidor no PDV ou em suas proximidades e, por meio do app, oferece pontos em dobro ou sugere uma nova bebida baseada em pedidos anteriores, enviando a sugestão diretamente para o app ou para o barista.

Recompra: etapa final, e por muitos desconsiderada. O que fazer quando o cliente sai de nosso ponto de venda? A resposta está na fidelização. Afinal, a grande equaçãodo varejo está sempre em “vender mais, melhor, e de novo”. Nesta fase, a IA pode ajudar ao garantir a satisfação e em nutrir o relacionamento.

A BestBuy, por exemplo, usa Inteligência Artificial para analisar interações de atendimento e dados de performance para identificar seus melhores funcionários e, mais importante, detectar lacunas de treinamento técnico na equipe de vendas e suporte, permitindo ações de correção direcionadas. O monitoramento constante vai muito além dos resultados de vendas, focando na qualidade do atendimento.

Inúmeros outros casos poderiam ser mencionados, e a aplicação em cada uma das fases não para por aí. 

O backoffice do PDV: A IA como Cérebro da Operação Varejista

Se a IA na linha de frente encanta o cliente, nos bastidores ela otimiza processos, corta custos e resolve problemas crônicos do varejo com uma eficiência sem precedentes. A aplicação da IA no core operacional é, talvez, o seu impacto mais profundo e rentável.

Um dos maiores vilões do varejo é a ruptura de gôndola. Dados da Neogrid apontam que o custo da ruptura para o varejo brasileiro representa de 4 a 5% do faturamento anual, um montante que pode chegar a impressionantes 60-75 bilhões de reais. A IA ataca esse problema transformando a reposição de reativa para preditiva. O processo é elegante em sua lógica: algoritmos de IA analisam dados históricos de vendas por SKU e por loja, e os enriquecem com dados externos, como previsão do tempo e eventos locais. Com base nisso, o sistema gera uma previsão de demanda ultraprecisa e dispara ordens de reposição automáticas.

O Walmart é um mestre nisso, usando Inteligência Artificial para prever a demanda de milhares de itens considerando mais de 50 variáveis. No Brasil, o Magazine Luiza utiliza seus cientistas de dados para otimizar a alocação de estoque entre o centro de distribuição e as lojas, garantindo que o produto certo esteja na loja com maior probabilidade de venda. A DPSP (Drogaria São Paulo e Pacheco) vai além, usando IA para antecipar eventos que fogem do padrão comportamental, como picos de demanda por medicamentos durante surtos de vírus.

Para garantir que o produto chegue à prateleira, a IA também oferece soluções de execução em tempo real. O Carrefour já testou no Brasil sistemas com Visão Computacional, onde câmeras escaneiam as gôndolas e alertam a equipe via aplicativo mobile quando um produto acaba. A rede americana Kroger combina essa visão com Etiquetas Eletrônicas de Prateleira (ESLs), que não apenas exibem o preço, mas também o ajustam dinamicamente com base na demanda, estoque e validade (especialmente para perecíveis), maximizando a margem e reduzindo o desperdício.

Outro ralo de lucratividade é a prevenção de perdas. Segundo a ABRAPPE, as perdas totais no Brasil chegam a 1,54% do faturamento bruto, um custo estimado de 30 bilhões de reais. A Inteligência Artificial oferece ferramentas poderosas para mitigar esse problema.

A Renner, por exemplo, realiza inventários ultra-rápidos com tecnologia RFID, identificando perdas quase em tempo real e otimizando transferências de estoque para evitar liquidações desnecessárias. O GPA, assim como muitos supermercadistas, inovadores no Brasil. As aplicações já estão aqui. O caminho da digitalização do espaço físico monitora seus caixas de autoatendimento com Visão Computacional para identificar erros ou fraudes, como a troca de etiquetas de produtos, e analisa dados de PDV para encontrar padrões de transações suspeitas. A DicksSports, líder do segmento esportivo nos EUA, anunciou na NRF 2023 a utilização de IA por voz nos headsets dos funcionários. A ferramenta auxilia na solução de dúvidas sobre produtos complexos e na oferta de itens qualificados, melhorando a performance de vendas e garantindo a consistência do serviço. 

O que antes parecia loucura, hoje é realidade em grandes redes globais e, cada vez mais, em players não é mais tão novo ou longo. O futuro, e também o presente, do varejo pertence à Inteligência Artificial. A questão para os empresários varejistas brasileiros não é mais se devem adotar a IA, mas como e com que velocidade irão integrar essa inteligência em seus negócios para não apenas sobreviver, mas prosperar na era da loja conectada.

Imagem: Central do Varejo / Patricia Cotti durante evento Imersão IA no Varejo


Patricia Cotti – Ganhadora do Digital Transformation Awards, Sócia Diretora da Goakira, Diretora de Pesquisa do IBEVAR, Colunista Central do Varejo, Professora dos MBAs da FIA, ESPM, ESECOM, USP.

Continue Reading
Comente aqui

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *